A Vegetariana

Comentários a partir de uma leitura compartilhada

LIVROS

Alana Gândara de Jesus Ferreira e Neila Fabrícia Alves Conceição

12/18/20243 min read

A vegetariana - Han Kang

Um livro curto, mas não se resume a densidade de um livro pela quantidade de páginas. Uma leitura que, em muitos momentos, apresenta-se angustiante e, por isso, é preciso pausar para retornar e avançar.

A primeira parte apresenta o tornar-se vegetariana. Não se torna vegetariana a partir do que se espera convencionalmente de alguém que possa fazer esse movimento, seja por um viés de uma pauta social ou por um movimento individual. Yeonghye torna-se vegetariana a partir dos seus sonhos e do que esses sonhos lhe transmitem: um certo horror ao sangue, à carne. Como se o tornar-se vegetariana pudesse, assim, extinguir esses sonhos. Para a psicanálise, o sonho precisa ser escutado. Os sonhos de Yeonghye são ignorados.

É interessante perceber as mudanças em seu meio após ela se tornar vegetariana. O marido, que precisa se organizar diante da esposa que não come mais carne; a família, que tenta a todo custo obrigar Yeonghye a voltar a comer carne. Não comer carne se torna inadmissível. É angustiante acompanhar a cena em que os familiares, e principalmente o pai, tentam obrigá-la a comer carne. Um silenciamento! A sua voz, suas palavras, são ignoradas, e prevalece o pai tentando impor uma lei.

Quando se torna vegetariana, ela deixa de ser a esposa ordinária, a filha submissa, a cunhada desinteressante. Mas, em busca de sua liberdade e por meio de tantos olhares e violências, ela se torna presa àqueles sonhos de trazê-la à vida, fazendo de uma escolha um ponto de partida para a loucura narrada imposta pelo Outro.

Na segunda parte e, para nós, a mais desconfortável, Yeonghye nos é mostrada a partir do olhar obcecado do seu cunhado, um artista plástico e marido de sua irmã. Momento este em que a personagem, inicialmente, mostra-se livre das amarras do marido, mas preso a outros olhares. Ele, o cunhado, fica incansável atrás de Yeonghye por saber que ela tinha sua mancha mongólica, algo típico de recém nascidos. A partir da tentativa de fotografá-la nua e com pinturas pelo corpo, ele se sente sexualmente atraído, algo beirando a perversão, uma vez que se beneficia da sua fragilidade e da tentativa de organização de Yeonghye por meio das pinturas das plantas em seu corpo. A visão do cunhado coloca Yeonghye num ato ainda mais vulnerável, misterioso e primitivo, talvez numa forma de manter ali sua posição perversa em se aproximar dela por meio da arte erótica, abusando de sua incapacidade de decisão, tal qual uma posição infantil.


Na terceira parte, acompanhamos a vivência da irmã de Yeonghye. Ela apresenta pontos importantes da infância das duas. Yeonghye sempre sofreu mais com as violências do pai. Era um alvo certo. Um ponto interessante também é a presença dos atravessamentos da mudança de vida de Yeonghye e os impactos de “um desencadeamento” (isso sou eu elaborando, não sei se cabe deixar assim) na vida da irmã. A irmã permanece seguindo com a vida sem realmente vivê-la. Um lugar de cuidar do outro e uma mortificação de si. Como é apresentado na página 155: “Bastava tocar a vida, não havia outra alternativa.” E segue na página 156: “Foi nesse dia que percebeu que estava morta havia muito tempo. Que sua vida cansativa não passava de uma encenação ou de uma fantasmagoria. A face da morte, que tinha se aproximado, colocando-se de pé bem ao seu lado, lhe era familiar, como alguém perdido tempos atrás e que ela voltava a encontrar agora.”


A terceira parte também apresenta um ponto importante na perspectiva hospitalar: a inexistência do desejo de quem adoece. O silenciamento da pessoa que deseja algo diferente do que é imposto a ela. Uma parte que exemplifica isso está na página 148, quando Yeonghye diz: “Ninguém me entende… Nem o médico, nem as enfermeiras… São todos iguais. Nem tentam me compreender. Só o que fazem é me dar comprimidos e enfiar agulhas em mim.” Isso realmente fala do saber biomédico, da perspectiva da "cura" e da inexistência de uma tentativa de escutar o sofrimento do sujeito.

“Depois de rir por alguns minutos, pensava que a vida era estranha. As pessoas comiam, bebiam, tomavam banho e seguiam vivendo, mesmo depois de passar por acontecimentos terríveis.” (Pág. 159)

Esse texto foi escrito diante das nossas elaborações a partir da nossa leitura compartilhada. Aqui contém nossas impressões diante daquilo que nos tocou.